A POPULAÇÃO MONTALVANENSE TINHA NO RIO SEVER UMA OPORTUNIDADE DE LAZER, VARIEDADE ALIMENTAR E IMPORTANTE PARA A ECONOMIA DO PÃO.
O «Rio» permitia o funcionamento dos moinhos (azenhas de rio) possibilitando transformar o grão em farinha. Havia peixe, água para lavar roupa (quando perto de Montalvão tudo praticamente secara, restando a água para pessoas e animais), demolhar linho e até tremoços para algum batizado ou boda. Além disso ir "passar o dia" ao «Rio», geralmente ao domingo à tarde, era quebrar a rotina e monotonia de uma vida que se regia pelos mesmos padrões. Só o envelhecimento alterava as rotinas.
Aquando do inventário para avaliar os danos causados pelo terramoto de 1 de novembro de 1755, da Corte em Lisboa, foi enviado um inquérito aos párocos de todo o País, aproveitando para saber de cada paróquia - povoações e territórios - as características geográficas, demográficas, históricas, económicas, religiosas e administrativas. O aviso (perguntas) data de 18 de janeiro de 1758, assinado pelo Secretário de Estado dos Negócios Interiores do Reino (equivalente ao atual primeiro ministro), Sebastião José de Carvalho e Melo, futuro «Marquês de Pombal» em 1769 depois de ser «Conde de Oeiras», em 1759. A resposta de Montalvão surge em 24 de abril de 1758, pelo Vigário Frei António Nunes Pestana de Mendonça. É de toda a justiça referir que as respostas enviadas de Montalvão são das mais completas, mesmo em comparação a nível nacional, dando um bom "retrato" do século XVIII montalvanense e permitindo, na atualidade, perceber a realidade do século XX e XXI.
As perguntas são:
&3. O que se procura saber do Rio dessa terra he o seguinte:
1.º Como se chama assim o Rio, como o sítio onde nasce?
2.º Se nasce logo caudaloso, e se corre todo o ano?
3.º Que outros rios entraõ nelle, e em que sítio?
4.º Se he navegavel, e deque embarcações he capaz?
5.º Se he de curso arrebatado, ou quieto em toda a sua distancia, ou em alguma parte d'ella?
6.º Se corre de Norte a Sul; se de Poente a Nascente; se de Sul a Norte; ou de Nascente a Poente?
7.º Se cria peixes, e de que especie saõ os que trás em maior abundancia?
8.º Se ha nelle pescarias, e em que tempo do anno?
9.º Se as pescarias saõ livres, ou de algum Senhor particular em todo o rio, ou em alguma parte delle?
10.º Se se cultivaõ as duas margens, e se tem muitos arvoredos de fruto, ou silvestre?
11.º Se tem alguma virtude particular nas suas aguas?
12.º Se conserva sempre o mesmo nome, ou começa a ter diferente em algumas partes, e como se chamaõ estas; ou se ha memoria, de que, em outro tempo, tivesse outro nome?
13.º Se morre no mar, ou em outro rio, e como se chama este, e o sítio em que entra nelle?
14.º Se tem alguma cachoeira, repreza, levada, ou açudes, que lhe embarassem o ser navegavel?
15.º Se tem pontes de cantaria, ou de .... (laje?), quantas, e em que sítios?
16.º Se tem moinhos, lagares de azeite, pizões, noras, ou outro algum engenho?
17.º Se em algum tempo, ou no presente se tirou ouro das suas areas?
18.º Se os póvos usaõ livremente das suas aguas para a cultura dos campos, ou com alguma pensaõ?
19.º Quantas leguas tem o rio; e as povoaçoes por onde passa desde o seu nascimento ate onde acaba?
20.º E qualquer outra cousa notavel, que naõ vá neste interrogatorio.
As respostas (excertos):
25 (Rio). ... hum hé o Rio chamado Sever, que nasce no termo da Villa de Marvaõ, que dista cinco légoas desta Villa; e vai morrer no Rio Tejo, no termo desta Villa; e tem este sete, ou oito légoas de comprido; tem ponte de pedra em distância de huma légoa no termo de Marvaõ aonde chamam a Portagem; porque logo começa o seu cursocaudálico; tem moinhos, e assudes; e naõ hé nem pode ser navegável, porque corre por terras muito fragosas e apertadas; hé livre, e somente tem alguns moinhos de paõ, que pagam foro ao Conde de Povolide Senhor da Commenda desta Villa = Das suas águas usaõ os moradores desta Villa com liberdade; e junto á foz do mesmo rio, que entra no Tejo cultivam-se as suas margens; e hé muito abundante de peixe a saber Barbo, Boga, Bordalo, Enguias, Truytas; e mais peixe meúdo; algumas árvores, que tem no termo desta Villa, são silvestres; e hé este rio porto, e entrada para o Reyno de Castella; e corre este rio de sul a norte; e nele entra no termo desta Villa uma ribeira, que chamam de Sam Joaõ, que nasce no termo da villa de Castello de Vide, e vem passando pelo termo da villa de Póvoa e Meadas, até este termo aonde se acaba no dito rio; e também tem esta esta ribeira alguns peixes, e algumas árvores silvestres; e no tempo de veraõ suspende as suas correntes, e fica alguma ágoa represada, em algumas funduras, que tem; o rio acima dito hé caudaloso e sempre corre com ímpeto; mas no tempo de verão hé menos impetuoso o seu curso; de sorte, que um destes anos em que houve esterilidade d'ágoas se vio totalmente exausta a sua corrente - O segundo e rio notável que corre pelo termo desta Villa hé o Tejo; ............... continua com a descrição da utilização e importância do rio Tejo.
Quase três séculos depois o rio Sever alterou-se muito. O volume de água é enorme devido à albufeira artificial provocada pela barragem de Cedilho - já não há rio a correr impetuosamente durante o Inverno e a secar em estiagem, no Verão - com as plataformas aplanadas do antigo leito de cheia submersas.
A notável descrição do Vigário Frei António Nunes Pestana de Mendonça, em 1758, podia ter sido feita nos Anos 60 e início da década de 70 do século XX, ou seja, até se começar a fazer sentir no caudal do rio Sever os efeitos da construção da barragem de Cedilho. A diferença, para 1758, é que depois do Liberalismo - anos 20 do século XIX - deixou de haver pagamentos aos Comendadores de Montalvão. Talvez a água escasseasse mais cedo, em quantidade, na Primavera, devido à construção da piscina fluvial na Portagem. Pelo menos, os idosos de Montalvão que tinham a idade do século XX - nascidos pouco antes ou pouco depois de 1900 - queixavam-se disso!
O rio Sever e o seu afluente mais influente do lado português (a ribeira de São João) na margem esquerda, têm as mesmas características. São cursos de água muito encaixados no relevo, em vales profundos com declives acentuados. Também as características dos solos montalvanenses - xistos e grauvaques - obrigam as águas a encontrar inúmeros obstáculos que havia de ultrapassar, nem que fosse de modo violento. As inclinações tão acentuadas não permitiam fazer agricultura, mas foi notável como a necessidade de ter comida obrigou a plantar oliveiras (mais oliveirinhas) obrigando a fazer miniterraços para que pudessem medrar, mas nem dois metros de altura, e pouca ramagem, conseguiram ter um século depois! Uma obra feita com sangue, suor e lágrimas, certamente.
O "RIO" era muito diferente no Inverno e no Verão, nem parecendo o mesmo.
INVERNO
Com tão fortes declives («barrêras do rio») a água da chuva era arrastada, em toda a sua bacia hidrográfica, rapidamente e impetuosamente, barrenta, transportando pedras e pequenas lajes para o leito do rio Sever. A confluência da ribeira de São João com o rio Sever era uma "maravilha da Natureza" pois ao "chocarem" as duas corrente enlameadas faziam a espuma voar pelo ar dando uma sensação de cascata quando era um encontro de dois caudais num plano. Mas todos os ribeiros e barrocas eram impetuosos fazendo arrastar no rio Sever madeira, árvores e arbustos que estavam secos e, mais invernia, menos invernia, eram arrancados. Um perigo muitas vezes encoberto. Morreram pessoas a tentar atravessar o Rio! Os moinhos sendo fundamentais para a economia local começavam a funcionar de montante (Moinho Branco) para jusante, estando uma pequena parte do ano todos, em funcionamento, simultaneamente. A água em turbilhão galgava os muros em laje dos açudes e fazia pequenas cascatas como se fossem degraus no leito do rio.
VERÃO
Com cada vez menos caudal o "RIO" até deixava de correr ou corria "timidamente" num fio de água com que se brincava, pois colocava-se um pé de um lado e outro do lado contrário e dizia-se (e era verdade) que tinha-se uma perna em Espanha e outra em Portugal. A água ficava represa, em «pégus», como pequenos lagos artificiais em leito do rio, nos muros dos moinhos (açudes) que foi uma forma engenhosa de conseguir prolongar a sua atividade não ao dia, mas a um dia da semana ou do mês, obrigando a água a fazer movimentar as mós. Os primeiros moinhos a deixarem de trabalhar eram os de montante e os últimos os de jusante, ou seja, o inverso do que ocorrera aquando do efeito das chuvas mais intensas de Outono/Inverno. Um rio com milhões de anos numa das maiores bacias e redes hidrográficas da Ibéria, a do rio Tejo, tem milhares de estórias que podiam ser contadas se o tempo não as tivesse apagado.
Assim se foi fazendo (e desfazendo) Montalvão
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