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23 fevereiro 2023

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Alpalhão: o Caminho Perdido

23 fevereiro 2023 0 Comentários

AS SEMELHANÇAS ENTRE MONTALVÃO E ALPALHÃO NÃO SÃO APENAS OS DEPÓSITOS DA ÁGUA QUE DATAM DOS ANOS 60 DO SÉCULO XX.



As duas povoações que até rimam no nome têm fortes ligações, mantendo um caminho direto durante séculos, que impressiona pela linearidade, por isso devia ser milenar, instalando-se no território quando este ainda estava pouco humanizado sendo apenas local de passagem. Nem existiam os dois povoados como fortes núcleos populacionais. 

Carta Corográfica de Portugal; Folha 22 (excerto); 1/100 000; Direção Geral dos Trabalhos Geodésicos do Reino; trabalhos de campo entre 1866 e 1876; editada em 1882

A Barca do rio Tejo
Montalvão antes de ser um local isolado - «uma ilha rodeada de terra» - foi um local privilegiado de passagem e ligação, pelo interior, entre o Norte e o Sul do território - certamente até antes de existir Portugal - por ter um ótimo local de atravessar o rio Tejo - a Barca era das que conseguia estar mais tempo em atividade - devido aos locais onde estavam implantados os dois cais, na margem direita (Perais) e na margem esquerda (Lomba da Barca) 
e era o caminho mais curto, por exemplo entre Castelo de Vide e todo o Nordeste Alentejano com Castelo Branco e todo o Sudeste da Beira Baixa e vice-versa. Só com a inauguração da ponte metálica, em Vila Velha de Ródão (1888) e o aumento do trânsito rodoviário (em detrimento dos veículos de tração animal ou deslocações pedestres) «A Barca» foi perdendo importância. Assim, Montalvão foi ficando cada vez mais isolado, virado para si próprio.


Os três caminhos

Montalvão tinha três ligações diretas - atualmente só tem duas - muito frequentadas até 1888. Se Nisa tinha uma barca - próximo do local onde se construiu a ponte (o Porto do Tejo) e ainda a da Amieira mais a jusante, Alpalhão e Castelo de Vide tinham preferência pela barca de Montalvão. No caminho entre Castelo de Vide e Montalvão, num local abundante em água, surgiria Póvoa e Meadas. No século XX seria feita a estrada e até um desvio para evitar fazer uma ponte na linha de água que provoca desnível acentuado na «Fonte Ferrenha». No caminho entre Alpalhão e Montalvão, cerca de 23 quilómetros, não só nunca surgiu um povoado com dimensão para se autonomizar, como o caminho e azinhagas (caminho com paredes laterais) nunca seria alcatroado e com a desertificação demográfica seria abandonado, até porque havendo duas estradas - uma por Póvoa e Meadas e outra por Nisa - as deslocações eram mais rápidas em tempo e acessíveis em custos, comparativamente com esse caminho ancestral que a evolução tecnológica fez desaparecer.


Ponte de pedra sobre a ribeira de Nisa junto à Ermida de Nossa Senhora da Graça (margem esquerda da citada ribeira)


Nisa: da ponte de pedra à estrada atual

Ainda que tenha matéria para texto autónomo (e será publicado num futuro próximo), não se pode ignorar - mesmo escrevendo acerca da ligação entre Montalvão e Alpalhão - que Nisa por ser sempre o maior povoado da região foi havendo ajustes para tornar a ligação com Montalvão cada vez mais eficiente, ou seja mais rápida e cómoda. Comparando a estrada atual com os caminhos existentes pode observar-se que existiram ou existem três ligações: primeiro pela Senhora da Graça (ponte de pedra) surgindo uma localidade, o Pé da Serra, ao alto, na cumeada que divide a encosta da ribeira de Nisa com o ribeiro de Fivenco («Fevele» em Montalvão ou "Fiverlo" na Salavessa) na bifurcação para Montalvão e para a Salavessa; depois uma ligação a norte da Ermida de Santo André; e finalmente uma estrada que teve grande parte do traçado construído em terrenos expropriados, quer o troço a Oeste da Ribeira de Nisa, quer a Este onde, para facilitar o trânsito automóvel 8e mesmo assim é penoso) não se utilizou o caminho que também era secular, mesmo milenar como as cartas topográficas, com cem anos de diferença (1876 e 1956) provam e comprovam. Até uma pequena ponte sobre o ribeiro de Fivenco foi construída, substituindo a antiquíssima de lajeado para carros, carretas e carroça.


Em cima: Carta Corográfica de Portugal; Folha 28B (excerto9; 1/50 000; Instituto Geográfico e Cadastral; trabalhos de campo entre 1945 e 1947; editada em 1956; ao centro: Carta Corográfica de Portugal; Folha 22 (excerto); 1/100 000; Direção Geral dos Trabalhos Geodésicos do Reino; trabalhos de campo entre 1866 e 1876; editada em 1882; em baixo: sobreposição das três ligações entre Montalvão e Nisa. A implantação da estrada obrigou a ignorar, depois do ribeiro de Santo André, o traçado primitivo das caminhos e azinhagas. Abriu-se um novo troço, entre este ribeiro e a ponte sobre a ribeira de Nisa, a Oeste desta, ou seja na margem esquerda. E depois, na margem direita, o traçado é totalmente novo, mesmo para lá do ribeiro de Fivenco. Rasgou-se o terreno passando a norte do talefe da "Atalaia 2.ª" (o caminho anterior passava a sul) e continua o trajeto mais a norte (em relação ao caminho antigo) passando muito mais próximo do talefe do "Monte Queimado". Uma estrada em terrenos expropriados, para facilitar o trânsito rodoviário, quando existia um antiquíssimo caminho público! 


Alpalhão: o caminho do meio
Ouvi falar deste caminho, há mais de 50 anos, mas sem imaginar minimamente que assim fosse. Quando alguém dizia que o Ti João de Alpalhão vinha da sua terra para Montalvão sem que fosse visto nas estradas alcatroadas - quer a que passava pela Póvoa e Meadas, quer a que vinha de Nisa - lembro-me de ouvir dizer: "ele ainda vem pelo caminho velho"! Mas nunca imaginei que o "caminho velho" fosse uma série de azinhagas (com paredes laterais) e caminhos (sem paredes) quase em linha reta e ligando directamente as duas localidades. O TI João de Alpalhão deve ter sido o último habitante do Planeta Terra a fazer integralmente este caminho e nos dois sentidos. Havia quem utilizasse parcialmente parte dele para acesso a terrenos agrícolas, mas há muito que deixara de ser utilizado para deslocações entre Montalvão e Alpalhão ou Alpalhão e Montalvão.

(clicando em cima das imagens, geralmente, consegue-se melhorar a visualização)






Um caminho linear entre ribeiros e cabeços

O traçado do caminho entre Montalvão - Alpalhão - Montalvão é o paradigma de uma ligação antiquíssima pois o seu traçado é quase em linha reta. E só não o é por não ser em terreno plano, mas acidentado. Não deixa de ser extraordinário como pode ser tão próximo de uma linha reta. Montalvão e Alpalhão distam 21 quilómetros. O caminho que as liga (ou ligava) tem 23 quilómetros, ou seja, mais dois quilómetros. São dez por cento "a mais", o que quer dizer, que o "desvio médio" é de 200 metros a cada quilómetro o que é notável sabendo-se que há, por vezes desníveis acentuados. Para se estabelecer uma ligação deste tipo - tão direta, mesmo implantada em território com alguma orogenia (relevo) indica que foi estabelecido por Seres Humanos muito antes de haver posse privada dos terrenos para a atividade agrícola.




A riqueza que este caminho proporciona (muda a paisagem de xisto e grauvaques para granito metamórfico) bem como a importância demográfica das duas localidades

Obrigaria a textos e ilustrações impensáveis de reunir apenas neste, pois ficaria demasiado "pesado" até impossível de materializar tendo em conta as limitações técnicas. Assim estão previstas mais duas partes:

Parte II (componente física e natural) - Por entre ribeiros e cabeços, por entre «cantches» e «pedras açafruas»;

Parte III (componente humana e cultural) - Afinidades, diferenças e complementaridade, entre as gentes de Montalvão e de Alpalhão, em 1803.


NOTA FINAL: o texto que se segue já foi publicado no efémero facebook merecendo ficar eternizado neste blogue, pois foi por ele que ouvi falar em "caminho velho" e ao nunca esquecer quando houve oportunidade quis descobrir onde e como era o "caminho velho".


O Ti João de Alpalhão

Ti Júan d’Alpalham… montalvanense por simpatia. «Senam pudéri dar um tustam, acête um bucade de pam!» Em Montalvão nunca se fechava a porta da rua à chave, só ao trinco. Nos trincos antigos de gatilho por fora e lingueta interior era só carregar e abria a porta. Nos modernos era com um cordel, dando um nó no trinco e que depois passava pelo buraco onde o carteiro colocava as cartas. Era só do lado de fora puxar o cordel que este abria o trinco por dentro. Havia chave para fechar a porta mas algumas enferrujavam por não serem usadas toda uma vida. Só as poucas pessoas que saíam do povoado mais de dois dias/duas noites fechavam a porta da rua. Nem nos dias da Festa da «Senhô Drúmedes», com tantos forasteiros, se fechavam as portas à chave. O hábito de não fechar fazia esquecer que havia quase tantos não montalvanenses na «Vila» como habitantes. Uma presença regular era o senhor João de Alpalhão que praticamente duas ou três vezes por ano aparecia na povoação a mendigar. Era tratado como se fosse montalvanense, pois por todos era estimado e cada um dava-lhe o que tinha e podia dar. Ele agradecia e tinha simpatia por Montalvão. E na povoação havia a ideia de que quem vinha por bem é como se dela fosse. O Ti Júan d’Alpalham era como se fosse. Chegava com a bolsa às «tronchas» (costas), apoiado num grande cajado que era o seu companheiro das caminhadas e logo que via um grupo espojava-se no chão, com os seus pés calejados por milhares de quilómetros, ao Sol e ao frio, dizendo “Se não puder dar um tostão, aceito um bocado de pão”. E contava que deixara uma namorada na Póvoa ou já no «Burnáldine». A todas as povoações onde chegava, chegava também a notícia que tinha uma namorada na derradeira povoação visitada. Continuava a andar pela «Vila» e se visse umas mulheres a fazer renda ou malha lá se sentava ele no chão a fazer o pedido: “Se não puder dar um tostão, aceito um bocado de pão”. E continuava. Se tivesse vindo de Póvoa e Meadas seguia para a Salavessa. Se tivesse vindo da Salavessa seguia para Póvoa e Meadas onde chegaria a notícia que deixara uma namorada em Montalvão. O Ti Júan d’Alpalham não mendigava só em Montalvão mas fazia “circuitos” por todo o norte do distrito de Portalegre chegando até a ir povoações bem a sul da capital de distrito. Para Montalvão dependia mas fazia, geralmente, Alpalhão – Póvoa e Meadas – Montalvão – Salavessa – Pé da Serra – Senhora da Graça – Nisa – Alpalhão. Não pernoitava nas povoações mas nalgum palheiro, curral ou telheiro que tinha autorização dos donos para o fazer. Conhecia bem todos os bons sítios para descansar e dormir. Dominava os caminhos do norte do distrito de Portalegre como as linhas das palmas das suas mãos. Dizia-se – nunca foi certificado – que os pais até teriam “posses” como almocreve, bufarinheiro ou moço de fretes, com carro de muares, mas ele nascera sem tino. E a ficar em Alpalhão a vaguear pelas ruas preferiu correr centenas de povoações, das mais pequenas às maiores, onde por todos era acarinhado. Bonacheirão, ria-se como se o amanhã não lhe trouxesse dissabores. É extraordinário que, em Lisboa, quando se encontram alentejanos que tenham vivido, nos Anos 40 e 50, do século XX nas suas povoações, tão distantes como Montalvão (Nisa), Assumar (Monforte), Cabeço de Vide (Fronteira), Beirã (Marvão), Alagoa, Urra e Fortios (Portalegre), Comenda (Gavião), Gáfete (Crato), Alter do Chão ou Esperança (Arronches) todos recordem o Ti João de Alpalhão. «Senam pudéri dar um tustam, acête um bucade de pam!» Referem-se a ele sempre com carinho e desvelo. Esses alentejanos e alentejanas nunca estiveram noutras localidades mas lembram-se dele que esteve em todas. Ao recordar vivências que por muito idênticas têm diferenças a união está nele que era uma “Paz d’Alma” em todas. Ti Júan d’Alpalham serve de junção entre gente que, naquele tempo, tão distante estava. Cenas da Vida Montalvanense.


Assim se foram construindo (e desconstruindo) Montalvão e Alpalhão 


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