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17 janeiro 2021

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Matanças (Parte I: Enchidos)

17 janeiro 2021 0 Comentários

MÊS DE JANEIRO ERA MÊS DE MATANÇAS EM MONTALVÃO.




Nem todas as famílias conseguiam alimentar um porco, entre abril (quando compravam «bacurinhes») até janeiro do ano seguinte. Além dos «riques» (que possuíam vários porcos pois tinham quem cuidasse deles a tempo inteiro) só quem tinha algum quintal em tamanho (escasseavam) ou algum «tcham», horta ou tapada próximo da povoação podia ter um porco para fazer uma matança. Por questões de salubridade e acessibilidade a «Furda» tinha que ficar na povoação (quintal) ou próximo dela, para ser possível alimentá-lo, pelo menos, duas vezes por dia com a «vienda», restos da comida diária migada para um balde mais um púcaro de bagaço da azeitona e uns punhados de farelos. Se houver lande dos sobreiros e bolotas das azinheiras é "acepipe" para os bácoros. E como eles as mereciam... 

 



Além destas questões havia ainda outra dificuldade e que dificuldade! Poucas famílias montalvanenses tinham possibilidades de conseguir "sobras na alimentação" para poderem transformar um leitão num porco com arrobas suficientes para poder fazer uma matança. É um mito que todas as famílias em Montalvão faziam a sua matança anual. Era bom, era! Nem vinte por cento!  No apogeu demográfico de Montalvão, em meados dos Anos 50, existiram cerca de 500 famílias na freguesia mas nem cem matanças se faziam por ano! 



A variedade de carne de porco era imensa, com destaque para os enchidos. Do porco tudo se aproveitava, desde a língua à cauda. E nem toda acabava no fumeiro, tal como alguma era de consumo imediato. Cada localidade tinha os seus enchidos pois o modo como se faziam passaram séculos de geração em geração. Dizia-se que o "fumeiro" de Montalvão era muito semelhante ao de Alpalhão.




Bisneto da Xá Roberta (com salsicharia na rua Direita), neto de quem sabia fazer matanças na perfeição à moda de Montalvão (Ti Zé Caratana, filho da Xá Roberta) e primo de uma da últimas salsicheiras montalvanenses que tinha fumeiros de classe eterna (Xá Roberta, da rua da São Pedro, sobrinha do Ti Zé Caratana) assisti a algumas matanças podendo dividir o resultado em quatro categorias:

1. Consumo imediato;

2. Carne salgada;

3. Carne enrolada;

4. Carne migada:

4.1. Para tripa do porco

4.2. Para tripa de vaca



Depois de morto o porco era pesado e desmanchado, pendurado na vertical, sangrando para um alguidar de barro vidrado.



Antes de haver água canalizada em Montalvão (1963) as tripas do porco lavavam-se nas barrocas (água que corria após chuvadas mas não tinha profundidade, ou seja, onde não se lavava roupa) perto da povoação que corriam bem, entre dezembro e fevereiro. Depois de haver água canalizada e também um declínio demográfico que se acentuou nos Anos 70 - com as matanças a diminuírem drasticamente até se extinguirem - quem tinha quintal ou condições deixou de o fazer. 




A cauda (rabo) do porco, bem como o pâncreas (passarinha) eram assados nas brasas do Lume. De imediato. O cérebro (miolos) e rins eram consumidos nos dias seguintes fritos com ovos das galinhas. A língua era estufada. O corpo do porco é semelhante ao humano, pois a par do urso são três mamíferos omnívoros, ou seja, comem carne e vegetais. "Se quiseres ver o teu corpo desmancha o teu porco" é um velho adágio popular.



Os Lombos (dois) era carne do lombo do porco enrolada em pele da banha apertada com fio indo para o fumeiro;

Os Presuntos (dois) eram das patas traseiras mas também podiam ser os das patas dianteiras. Por vezes só se fazia um presunto da pata traseira pois quantos mais presuntos menos carne haveria para migar e fazer enchidos que um porco por muitas arrobas que pese não é infinito. Os presuntos iam para a salgadeira, uma talha de barro de boca larga, como os vasos, com sal;

O Toucinho (pele com gordura) era cortado acabando na salgadeira.



Quanto aos enchidos havia os que eram feitos com tripa do porco e como esta era escassa outra carne tinha de encher pele seca de vaca. A carne tinha de se migar («megué» em montalvanês) para alguidares de barro vidrados com água, condimentados a colorau, sal e alho, a "salmoura". As morcelas, cacholeiras, farinheiras e mouros são feitos à parte. Depois com enchedeiras era colocada dentro das tripas que eram cortadas no tamanho adequado, palmo a palmo-e-meio.





TRIPA DO PORCO

As Morcelas feitas com o duodeno (ligação do estômago ao intestino delgado) eram sangue com gordura ensanguentada cozidas em água quente. As morcelas iam para o fumeiro lateral só para não criarem mofo pois eram os primeiros enchidos a poderem ser consumidos, tal como as cacholeiras;


O Buxo (estômago) era enchido como se fosse morcela e cozido, levando mais tempo, pois era maior; 


As Cacholeiras utilizando o intestino delgado eram feitas com carne muito tenra, as «fraldinhas» migada em pedaços muito pequenos e fígado ou «catchóla» em montalvanês) raspado - não era cortado - e vinho branco. A carne ia para o fumeiro podendo ser consumida, sempre assadas nas brasas do Lume, depois das morcelas e farinheiras. A seguir às cacholeiras começava-se a consumir os enchidos de "tripa fina" (intestino delgado e de vaca); 


As Linguiças eram feitas com carne migada para o intestino delgado, só diferindo dos chouriços por estes serem enchidos em tripa de vaca;


O Painacedisso era carne migada para o início do intestino grosso onde está o apêndice;  


Os Paios eram feitos com o intestino grosso sendo secionados a cada palmo ou palmo-e-meio;


O Guarda Fumeiro era feito com a tripa final - o recto - de ligação do intestino grosso ao ânus;


A Bexiga era enchida com carne migada tendo o sabor característico - para mim o melhor enchido, pois o Lombo (melhor dos melhores) sendo superior não é um enchido - paladar dado pelo órgão com que era feito.



TRIPA DE VACA (SECA)

As Farinheiras enchidas com gorduras e banhas em água quente a ferver tinham confeção esmerada, bem condimentada com sal, colorau e alho. Depois de desfeita a gordura pela água a ferver quando já morna juntava-se farinha de trigo. Em Montalvão consumia-se frita ou cozida;


Os Chouriços eram enchidos com carne «meguéda» pouco ensanguentada;


Os Mouros eram enchidos aproveitando a carne mais ensanguentada migando ainda o coração e bofes (pulmões) até mesmo, outras miudezas que andassem de sobra.




Saberes milenares que davam um sabor à vida - difícil, rude e incerta - num tempo em que não existiam frigoríficos, arcas congeladoras e supermercados. Havia que tentar ser o mais autosuficiente que fosse possível. Estava neste aspeto e capacidade a qualidade de vida desses tempos de pobreza sem conhecer o que era o Mundo. O Mundo era Montalvão. Havia apenas um modo de vida, desconhecendo-se o que eram outras culturas e formas de vida. Um modo de vida igual. A diferença estava nos que podiam ter mais (matavam mais que um porco) e nos que tinham menos (nem matanças podiam fazer). De resto os hábitos e rotinas eram iguais. As diferenças estavam na quantidade!





Um dia destes a segunda parte (As Receitas para cada enchido)

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